Durante os últimos dois anos e meio, a segurança do transporte público foi questionada, indicando o setor como um “vilão” recorrente do aumento de casos de Covid-19. A aglomeração de pessoas em espaços restritos passava a impressão de que o segmento era um dos principais responsáveis pelo aumento de contágios. Ao observar a situação com um viés de retrospectiva, será que esse raciocínio aplicado em meio à pandemia estava correto: era possível atribuir os aumentos de contágio ao transporte coletivo?
“Muito se atribuía à transmissibilidade da Covid a espaços fechados com grande aglomeração de pessoas, criando uma relação de causa e efeito com o transporte público. No acompanhamento da atividade, estudos científicos estrangeiros com levantamentos de dados foram feitos, até por não termos essa tradição de pesquisas no Brasil, e mostraram o contrário”, afirma o advogado Mestre em Direito e com atuação na área de transporte coletivo Leonardo Agostini.
Pesquisas de diversos países, como França, Alemanha, Itália, Japão e Estados Unidos, indicaram que, ao contrário do que se imaginava, a probabilidade de infecções era mais comum em bares, encontros familiares ou reuniões de trabalho do que no transporte público, ressaltando a segurança do transporte público. Na avaliação de Agostini, esse pode ser um dos principais aprendizados trazidos pela pandemia.
“Comprovou-se que houve baixa transmissibilidade nos modais de transporte. O usuário deve ficar mais preocupado nos locais em que ele baixa a guarda, está mais relaxado, em que abraça as pessoas e fala mais alto, como as comemorações. Há maior chance de se infectar nesta situação do que no transporte coletivo”, ressalta o advogado.
Em dois estudos realizados em 2020, o Instituto Francês de Informação em Saúde Pública (Santé Publique France) mostrou que as contaminações no transporte público eram baixas. Entre 9 de maio e 3 de junho de 2020, a organização identificou 150 clusters de Covid-19 (uma sequência de pelo menos três pessoas infectadas de forma sucessiva) e nenhum desses grupos estava relacionado ao transporte coletivo.
O mesmo Instituto seguiu em um acompanhamento dessa estatística. Em setembro de 2020, de 2.830 clusters de Covid-19 encontrados, somente 1,2% foram comprovadamente relacionados à atividade de transporte coletivo (o que incluía ônibus, trens, aviões e balsas). Os principais propagadores do vírus eram:
– Locais de trabalho (24,9%);
– Escolas e universidades (19,5%);
– Centros de saúde (11%);
– Eventos públicos ou privados (11%);
– Encontros familiares (7%).
O Instituto Robert Koch, da Alemanha, levantou que apenas 0,2% das origens das infecções de Covid-19 rastreáveis em setembro de 2020 estavam ligadas ao transporte coletivo. Resultados semelhantes foram encontrados em outros países: Japão, Áustria e Estados Unidos. A Universidade de Colorado, por exemplo, considerou o risco de infecção inferior a 2% no transporte coletivo, desde que sejam resguardados cuidados como ventilação, uso de máscara e poucos diálogos.
“Esses números baixos estavam ligados a um grande uso de máscaras, à falta de conversas no ônibus ou terminal e permanência curta nos veículos, quando comparada a períodos no trabalho ou reunião de família. Fica-se no máximo 45 minutos dentro de um mesmo veículo, com várias paradas para abertura das portas e consequente circulação de ar”, conta Agostini.
Na Itália, a cidade de Chieti, a 5ª região do país em índice de mortalidade pela Covid-19, monitorou a presença do vírus ativo na principal linha de transporte do município. Foram usados filtros com “membrana de gelatina” na parte dianteira e traseira dos veículos. Com o uso de bastonete estéril, foram coletadas amostras por duas semanas. O resultado: nenhuma das amostras avaliadas estava infectada pelo vírus.
Divulgado apenas no fim de 2020, o estudo “Análise da Evolução das viagens de passageiros por ônibus e dos casos confirmados da Covid-19”, da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), coletou dados entre 29 de março e 25 de julho em 15 sistemas de transporte, incluindo o de Curitiba e da Região Metropolitana, que somam mais de 325 milhões de viagens de passageiros a cada mês.
A conclusão foi que “a suposta ligação entre o uso do transporte público e a propagação da Covid-19 não pode ser comprovada a partir da análise da situação observada em 15 sistemas de transporte público por ônibus no Brasil. Assim, não se pode afirmar que as variações no número de casos confirmados dependem diretamente do número de passageiros utilizando o transporte público”.
Para Agostini, a pandemia deixa vários aprendizados, entre eles o fato de o transporte público ser um serviço essencial à sociedade, induzindo desenvolvimento social e renda. “O uso do transporte público deve ser incentivado. A sociedade não teria conseguido passar pela pandemia com menores traumas sem o transporte público, que necessita de mais programas de incentivo”, diz.